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Por esta altura, presumo que já toda a gente conheça Artur Batista da Silva, o economista do observatório da ONU que coordenou um estudo acerca dos países do Sul que concluía que o melhor seria renegociar a dívida portuguesa. O Artur, soube-se agora, não é de nenhum observatório, não é da ONU e não chegou a conclusões nenhumas. O Artur, que teve um destaque mediático ímpar nos últimos dias, talvez nem sequer seja economista. É difícil saber: a universidade onde supostamente se doutorou, parece, está encerrada há alguns anos.

 

Como é que chegámos aqui? E o que é que este caso nos ensina?

 

Parece óbvio que Artur Batista da Silva (ABS) era uma fraude das grandes. Mas doses residuais de fraude são, em parte, inevitáveis. Os jornalistas, mesmo os melhores, não podem confirmar independentemente 100% da informação que transmitem. Toda a informação mediática é produto de um conflito entre os princípios do rigor, que recomendam cautela e confirmação, e os princípios comerciais da concorrência, que obrigam a notícias rápidas e actualizadas.

 

É verdade que a brincadeira do Artur foi uma coisa em grande; provavelmente, demasiado grande para poder ser justificada com a pressa das redacções. Por outro lado, basta um pequeno pecado original de um meio de informação - uma fonte mal confirmada, uma informação mal relatada - para que o erro se propague como um vírus. Ao longo da cadeia, alguém falhou e o resto, que está habituado a assumir que o primeiro meio de comunicação já fez o fact checking, limitou-se a propagar.

 

O que é que o caso ABS nos ensina? Provavelmente, muito pouco. Talvez apenas tenhamos tido o azar de presenciar o momento em que um daqueles casos limite da curva de Gauss se manifesta.

 

O mais curioso neste caso não foi a forma como o Artur subiu os degraus mediáticos até chegar à SIC e Expresso, sem que alguém o apanhasse no caminho. O mais estranho é que ao longo deste percurso o Artur foi deixando pistas suficientes para que observadores bem informados desconfiassem dele. E é isso que me deixa pouco confortável.

 

A certa altura de um debate (julgo que o Expresso da Meia Noite, embora não tenha certeza), o Artur diz que o BCE podia emprestar dinheiro directamente aos Estados, o que daria uma grande ajuda ao orçamento dos países do Sul. Há entraves legais a isto - mas ok, é uma opinião defensável. Porém, logo de seguida o Artur espalha-se ao comprido, quando diz que Portugal devia ter as mesmas condições que os bancos com juros de 0,5% (erro nº1), quando afirma que esta manobra permitiria baixar "imenso" a despesa com juros (erro nº2) e quando defende que os juros actualmente pagos são muito altos (erro nº3).

 

O erro nº1 está em presumir que as operações do BCE podem ser equiparadas a empréstimos da Troika. Não podem. Os empréstimos do BCE são feitos a um dia ou a uma semana, e é isso que justifica a taxa de juro tão baixa. Se Portugal estiver disposto a assumir o risco de ter de se refinanciar todas as semanas, também pode conseguir taxas de juro bem mais baixas - eventualmente, na casa daquilo que os bancos conseguem. 

 

Em todo o caso, a taxa actual já é bastante baixa - pouco mais de 3,2%, segundo as informações recentes. Finalmente, e aqui chegamos ao erro nº2, qualquer revisão da taxa efectiva aplicar-se-ia apenas à nova dívida, e não à que já está em stock, pelo que o impacto no orçamento seria sempre muito mais pequeno do que se poderia supor pela mera aplicação mecânica de uma taxa de juro de 0,5% ao stock de dívida actual. Recordo que estes casos foram retirados de cinco minutos a ver o Expresso da Meia Noite. Quem quiser apreciar a figura em todo o seu esplendor (e rigor...) pode passar os olhos por este vídeo.

 

O Artur esteve à frente de jornalistas de economia, directores de jornais, opinion-makers e de muitos outros notáveis da nossa opinião pública. Eu não gosto, mas compreendo, que ninguém tenha verificado as credenciais de ABS quando ele se apresentou como economista da ONU. Tenho mais dificuldade em aceitar que ninguém se tenha lembrado de o fazer depois de ele ter começado a falar. Como é que ninguém o encostou à parede? Melhor ainda: como é que ninguém desconfiou de um homem que parece estar tão a leste do conhecimento mais básico para discutir estas questões? Há duas possibilidades. E nenhuma é reconfortante.

 

A primeira é que os interlocutores também não estão tecnicamente bem preparados. O Nicolau Santos não achou estranho que a ONU defendesse uma coisa daquelas por que não conseguiu deduzir, das palavras do ABS, que ele não fazia a mais pequena ideia de como funciona um banco central - porque, na verdade, ele próprio também não sabe. Esta hipótese, da "TV como um jogo de actores" (telegénicos mas vazios), é assustadoramente perigosa. E, tendo em conta as prestações de mulas como o Sousa Tavares, dolorosamente credível.

 

Se a razão não foi cognitiva, talvez tenha sido política. Ninguém apontou o dedo a ABS pela simples razão de que viram nele um cavalo de batalha de uma determinada posição ideológica. Só não sei o que será pior: ter opinion makers imperciais mas ignorantes, ou capazes mas comprometidos. Em nenhum caso ficamos bem servidos.

 

O meu palpite é que foi uma mistura dos dois: comentadores fraquinhos que se sentiram reconfortados em ver alguém da ONU, supostamente "especialista", a confirmar os seus preconceitos e elogiar as suas palavras. Há um caso semelhante, embora infinitamente mais grave, e que mostra bem como é fácil enganar ignorantes comprometidos: o caso Sokal. Um resumo em português da paródia está disponível em pdf. O livro é excelente.

 

E de resto, que tenham todos um Bom Natal.

 

P.S.- Acabei de reparar que o João Miranda tem uma entrada semelhante, que eu recomendo. Até porque também refere o caso Sokal.

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publicado às 14:44


1 comentário

De Sérgio Pinto a 25.12.2012 às 22:35

Priscila,

Concordo com a premissa geral do post, segundo a qual o caso de Artur Baptista da Silva nos ensina muito pouco. Acho que já não concordo tanto com alguns outros detalhes:

- Primeiro, e de forma mais geral, apesar de todo o barulho que agora se houve por tudo quanto é blogue, acho que não houve absolutamente ninguém a duvidar das credencias dele antes de as notícias sobre as “suspeitas” começarem a encher a comunicação social (isto não é uma crítica, menos ainda dirigida a si, apenas uma observação).

- Depois, não acho que os erros dele sejam especialmente mais gritantes do que os da generalidade dos “especialistas” enchem os meios de comunicação em Portugal. Se considerarmos personagens do calibre de um Henrique Raposo, João Lemos Esteves (ambos escrevem no Expresso), ou um qualquer Medina Carreira ou Pulido Valente, bem, nesse caso acho que o Baptista da Silva até fica bastante bem na fotografia. E não creio que isto seja específico de Portugal – nos EUA, passa-se genericamente o mesmo (talvez com a vantagem de, por estes lados, também se dar tempo de antena a um Krugman, Stiglitz, ou DeLong).

- E este é o ponto principal: acho que ninguém desconfiou de nada apenas com as intervenções públicas que ele realizou porque ele não era pior que muitos dos pseudo-notáveis cujo CV não desperta dúvidas. É verdade que ninguém o encostou à parede, mas também ninguém o fez a qualquer um dos idiotas que esteve sistematicamente errado sobre a crise dos últimos 4 anos e que passou todo este tempo a fazer previsões erradas e a passar receitas pretensamente inteligentes que se revelaram (grande surpresa!) um fiasco. Pior, essa gente continua a ter tempo de antena.

- Especificamente sobre os erros: o segundo poderia ser facilmente entendido de outra forma (algo como realizar um novo empréstimo a uma taxa significativamente mais baixa, que permitisse pagar a totalidade ou parte do anterior), e o terceiro é de certa forma um juízo de valor (e pode ser argumentado que, mesmo sendo a taxa baixa, o facto de a dívida representar uma tão grande %PIB implica que uma parte significativa das receitas orçamentais são gastas em juros). Isto para dizer que, apesar de tudo, nada disto me parece pior do que se vê diariamente (e é significativamente melhor do que o lixo que é rotineiramente publicado por Insurgentes, de cada vez que um qualquer Campelo, Azevedo Alves, ou Noronha, se dispõe a papaguear mais um “estudo” feito por uma qualquer voz do dono proveniente do Von Mises Institute, da Heritage Foundation, ou do American Enterprise Institute).

P.S. Não sendo isto uma crítica, não pude deixar de achar irónico que, no fim, haja uma referência ao João Miranda, tendo em conta que: i) não seria fácil arranjar um exemplo de alguém que tão frequentemente se dispõe a emitir sentenças sobre temas em que é profundamente ignorante, sendo recompensado com uma coluna no DN (não sei se ainda a mantém); ii) no mesmo post, ele torce os factos para tentar fazer parecer que o Krugman tem uma posição que, na verdade, não é dele, ao mesmo tempo que insiste em ignorar o facto de que houve uma crise que se abateu sobre a Europa (toda a Europa, não apenas Portugal, e não apenas por culpa do Sócrates). Enfim, em bom exemplar dos comentadores nacionais.

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