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Outra forma de ver as coisas

por PR, em 07.03.13

Nada como interromper um longo período vegetativo com uma adenda a um post velhinho. Mas este pode ajudar a clarificar as dúvidas que permanecem depois da série anterior. E sim: é acerca da importância dos processos em situações de negociação.

 

Imagine-se uma situação em que um sujeito tem informação confidencial e é subitamente capturado por gente malvada. Qual o grau de sofrimento que o torturador estará disposto a infligir para extrair essa informação? Se não tiver escrúpulos, o céu é o limite. O torturador pode aplicar todos os seus recursos para maximizar o desconforto alheio e assim aumentar a probabilidade de obter a informação desejada.

 

Mas uma fonte de informação morta não serve de nada. Por isso, apesar de a consciência do torturador não impor limites às técnicas que podem ser empregues, a capacidade de resistência física do torturado cria um upper bound que não pode ser transposto. A tortura deve ser, como dizia o Rei James, "gentle at first, and then more severe", mas não tão severa que mate a galinha dos ovos de ouro. É importante notar que este limite não resulta de comoção, sensatez ou compaixão. Resulta do simples facto de haver um limite físico àquilo que o torturado aguenta.

 

A estrutura desta relação é análoga à estrutura da relação entre os países credores e os países devedores. Não é exactamente igual, mas é suficientemente parecida para iluminar algumas confusões. 

 

No primeiro caso, há um torturador com interesse em obrigar uma terceira parte a levar a cabo uma acção: revelar informação. Os meios de que dispõe são a força física e a violência. No segundo caso, há um país credor com interesse em obrigar um país devedor a levar a cabo outra acção: reduzir o seu défice e tornar a dívida sustentável. O meio de que dispõe é a disponibilização de financiamento que mais ninguém está disposto a conceder. Se o torturador suspende a força física mediante o acesso à informação, o país devedor concede o empréstimo mediante a implementação de medidas de austeridade.

 

A subtileza seguinte a notar é que, da mesma forma que há um limite físico àquilo que pode ser obtido através do "pau" da tortura, também há um limite físico àquilo que pode ser obtido através da "cenoura" do financiamento. O "limite físico", ou upper bound se quisermos, é dado pela alternativa - que está sempre disponível - do país devedor abandonar o euro. Se a violência da austeridade proposta for superior à violência que seria gerada se se abandonasse o euro, então cria-se aí um limite "físico" para a capacidade de tolerância do país em causa. Um torturador não pode extrair informação de um morto, tal como um credor não pode fazer chantagem com um país que se financia na sua moeda própria.

 

Isto tem uma implicação importante. Se houver uma "revisão em alta" das "dores da austeridade" (por exemplo, porque os multiplicadores são maiores do que o previsto, ou porque a procura externa mingou), os países credores terão de ajustar as suas exigências orçamentais aos países devedores, da mesma forma que um torturador terá de reduzir o nível de dor se a fonte de informação ficar subitamente fragilizada. Não há aqui pena, comoção ou "alteração de estratégia": é apenas a acção racional de um agente que sabe que há um limite físico àquilo que pode ser atingido através do pau e da cenoura. O limite é a morte num caso, e a diferença entre a dor da austeridade e a dor de sair do euro no outro.

 

É aqui que entra a capacidade negocial e construção de um bom track record. Um país confiável e pode dar à outra parte a certeza de que não usará uma revisão de metas orçamentais como escapatória para não fazer reformas ou para deixar o legado a outro Governo. Assim, abre as portas a uma possibilidade que, até aqui, não podia ser equacionada: alterar as metas antes de se chegar ao limite físico da dor - que, uma vez transposta, implicaria a saída do euro.

 

Grande parte da conversa em torno da renegociação das metas não faz sentido. Resulta de uma forma ingénua de perceber o que está em causa, e de uma impossibilidade clara de ver o "quadro geral". Que a Troika aceitaria sempre flexibilizar as metas é uma trivialidade, tão banal como dizer que um torturador irá dosear a tortura de maneira a garantir que não mata a fonte de informação. A questão - toda a questão, neste caso - está em saber quando será essa flexibilização concedida. Um país de aldrabões terá de esperar até estar às portas da morte para ter algum alívio; mas um país de bons rapazes poderá contar com o seu bom track record para conseguir favores antes do ponto de ruptura. A diferença entre o primeiro e o segundo resultado será largamente ditado pela forma como o país em causa geriu o processo de consolidação e a relação com os credores. O resto é, vá lá, absolutamente irrelevante.

 

 

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publicado às 11:38


8 comentários

De Sérgio a 11.03.2013 às 09:01

Continua a escrever como se estivesse num laboratório.
A sua ideia ficou clara nos posts anteriores:

"Não há alternativa à austeridade."

Sim, já se sabe. Mas será esta austeridade a adequada? Não haveria outra austeridade que evitasse 17% de desemprego? Sim, sim, preocupação social não é "científica" e o economista não tem de se preocupar com minudências como a pobreza, a fome, saúde da população. Isso é coisas para os sociólogos e os hippies de humanidades.

Perdoe-me o desabafo, mas já cansa ver os economistas polarizados como meros agentes políticos em que das duas uma ou são pró austeridade ou contra austeridade. Mas sempre sem oferecer alternativas acerca de onde cortar e o que cortar.

E continua tudo (aqui se vê o regime) a fazer orelhas moucas dos pedidos de auditoria à divida.

Perdoe-me a falta de "rigor científico" da minha opinião. É difícil ter rigor científico quando tantos familiares e amigos, que não "viveram acima das suas possibilidades" estão a sofrer imenso com as politicas desde, e do anterior, governo. Assim é difícil aplaudir o que quer que seja.

Ainda bem que a Priscila está acima de coisas tão comezinhas o que permite mostrar-nos a luz e a razão deste governo. A longo prazo seremos todos felizes.........

De JS a 12.03.2013 às 18:06

Sinceramente, dentro da austeridade, penso que uma das variáveis (emprego ou salário real) será sempre sacrificada.

Embora possa ser feio dizer isto, se for 17% o máximo (que não será, à partida) e por tempo escasso, não é uma taxa de desemprego dramática para o período que vivemos. A questão é que nem parece que vá ser o máximo nem por pouco tempo.

Mas esta é a minha impressão pouco informada. Dentro de portas (supondo que a política europeia não se altera substancialmente), não vejo como, pelo menos, uma variável deste tipo não ser sacrificada. Taxas de desemprego de 20%, aparentemente, até na Suécia ocorreram quando fizeram a sua reforma... é certo com bem mais estratégia (que é dela em Portugal) e com concertação social. Mas, neste ponto, não há pensamento estratégico de praticamente ninguém em Portugal (governo, oposição, sindicatos, associações empresariais, etc...).

Não sei... alguém mais capacitado que diga se isto está assim tão errado ou tem algum pingo de verdade.

De Sérgio Pinto a 15.03.2013 às 23:49

Priscila,

Eu sei que, dada a minha falta de tempo, esta resposta vai ser mais curta e menos bem explicada do que a tua série de posts merecia. Por outro lado, não sei se alguma vez terei discordado tanto de algo que escreveste. Mas, indo directamente ao ponto que mais comichão me causa neste conjunto, não te parece que a situação actual da UE e, principalmente, dos países intervencionados, seria suficientemente para ilustrar o fiasco que constitui a brilhante ideia acerca da "consolidação fiscal sempre e em força" à conta da doutrina da "austeridade expansionária"? Que a principal força motriz do Gaspar é a crença numa ideologia falhada, cuja credibilidade intelectual foi reduzida a pó pelo choque com a realidade? E que, portanto, todo este exercício de elogio à sua sapiência negocial não faz muito sentido?

Convém relembrar, Priscila, que o ponto de partida desta gente:

Jean-Claude Trichet (http://www.ecb.int/press/key/date/2010/html/sp100624.en.html, com agradecimentos ao Krugman pela descoberta deste tesourinho (http://krugman.blogs.nytimes.com/2012/05/03/feel-the-confidence/)): As regards the economy, the idea that austerity measures could trigger stagnation is incorrect.
(...)
in these circumstances, everything that helps to increase the confidence of households, firms and investors in the sustainability of public finances is good for the consolidation of growth and job creation. I firmly believe that in the current circumstances confidence-inspiring policies will foster and not hamper economic recovery, because confidence is the key factor today.”


Vítor Gaspar: "My country definitely provides a cautionary tale that shows that, in some instances, short-run expansionary policies can be counterproductive,” Mr. Gaspar said. “There are some limitations to the intuitions from Keynes" (http://dealbook.nytimes.com/2012/04/23/portugals-finance-minister-we-tried-stimulus-and-it-didnt-work/). Presumivelmente, as medidas posteriores foram enormemente menos contraprodutivas, como rapidamente poderemos observar olhando para a evolução e para as expectativas futuras acerca do PIB e da taxa de desemprego.

Felizmente, ainda há economistas que usam o cérebro, ao contrário dos que habitam as instituições europeias e o Ministério das Finanças. Dani Rodrik, em 12 minutos que vale a pena gastar: http://www.youtube.com/watch?v=MyLF-Nj5Ldk&feature=youtu.be.

De PR a 18.03.2013 às 14:59

Sérgio, respondendo com uma tirada do mesmo Krugman (a quem presumo que tenhas ido buscar a citação do Trichet): apesar de ser muito fácil perceber o que é que a Alemanha devia fazer, é mais complicado perceber o que é que os países do Sul deviam fazer. Isto porque a alternativa à austeridade é sempre condicionada por aquilo que é ditado pelas instâncias superiores europeias, das quais dependemos para nos financiar.

Nesse sentido, dizer que "há uma alternativa à austeridade" é um pouco como dizer que "Há uma alternativa" a cumprir uma sentença de prisão. Não há. Quanto muito, poder-se-á dizer que é possível tentar persuadiar o director da prisão a deixar-nos fugir pela calada, mas assim visto de fora não parece um argumento particularmente robusto.

Uma afirmação mais razoável é dizer que, não podendo forçar o director a libertar-me pela força, posso ao menos persuadi-lo a libertar-me mais cedo pela confiança. Este exemplo até me parece particularmente feliz, na medida em que as comutações de sentenças, libertações antecipadas, etc., surgem normalmente na sequência de atenuantes por bom comportamento.

De PR a 18.03.2013 às 15:01

Nuno, eu assumo que faço parte de uma minoria. Se fosse para repetir o que diz a rua, certamente que não teria perdido tempo a escrever 5 posts.

De iupi a 16.03.2013 às 08:33

outra forma ainda é sair e olhar em volta: a realidade não faz sentido.

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